quinta-feira, 9 de junho de 2011

"O artista deve ser belo!?"

Ensaio originalmente enviado como depoimento para o Circuito Regional de Performance BodeArte 2011, Natal-RN (versão revisada em 10.2011).



José Mário Peixoto Santos - Zmário*

Na arte contemporânea, o corpo aparece nas manifestações da body art e em performances resignificado e redimensionado pela exaustiva exploração de seu potencial estético e biológico, associado ao uso das tecnologias: o corpo pós-moderno, fragmentado, esteticamente modificado, virtual. Desde os movimentos de vanguarda do início do século XX, passando pela action painting (décadas de 1940 e 1950); os happenings de Allan Kaprow e Wolf Vostell, entre outras expressões da década de1960; as ações do grupo Fluxus até as performances da década de 1970, notamos a recorrência da imagem do corpo representado como tema e também apresentado como o próprio objeto de arte. A partir daí, a participação do espectador passa a ser convocada, sua presença e sentidos valorizados, conduzindo à interatividade característica da arte tecnológica na atualidade.

A importância dada ao corpo na sociedade contemporânea, onde as noções de espaço público e privado, sujeito e objeto, o eu e o outro são mais evidenciadas, remete à imagem de um corpo político e crítico. Na atualidade, este corpo tem sido explorado como elemento estético, artístico, e até como instrumento bélico – o corpo arma, o homem bomba – também como máquina, redimensionado pelo uso de próteses tecnológicas. Este corpo atual, “transpassado por tecnologias”, é, paradoxalmente, limitado pela intolerância característica de um poder global e hegemônico. Ele expressa a sociedade contemporânea em sua complexidade e fragmentação, onde signos culturais, identitários, políticos, coexistem sobre uma pele escamada e com grande potencial de transformação. Este corpo concentra em si a capacidade de síntese de uma cultura predominantemente urbana, que ainda busca estabelecer uma relação mais equilibrada com o mundo artificial.

Um dos registros da série “Depilação Masculina”: Tórax DM, 2010 (fig.1) se aproxima dessas expressões da body art e também da produção do artista carioca Marcos Chaves em sua forma (1/1, 1997. Fotografia, díptico), porém, em seu conteúdo, as distâncias são evidentes como pelos brancos sobre a superfície de um corpo beirando a maturidade. Enquanto este artista, através da linguagem fotográfica, registra seu torso depilado em forma de círculo, à altura do tórax, em negativo e positivo – o que faz lembrar o próprio processo de revelação na fotografia, trato de explorar a depilação corporal como um processo, uma produção que se desdobra ora em ação ora em performance. Logo, o que resta de tudo isso também é o registro fotográfico já que os pelos crescem a cada instante e a cada instante já não são os mesmos, já não sou o mesmo... mas ainda assim o artista deve ser belo!?




Figura 1: Zmário. "Depilação Masculina": Tórax DM, 2010- (body art in progress). Foto: acervo do artista.




Essa produção, em essência, trata do corpo do homem contemporâneo, limpo, asséptico, sem suor e sem pelos! Refiro-me também ao “metrossexual”, o dito “homem que se cuida”, que vai ao centro de estética para pedicure, manicure, máscara facial, massagem relaxante, relaxamento capilar, maquiagem masculina e a depilação masculina! O homem deve ser belo!? Claro! Mas que corpo é este (da mulher e também do homem) excessivamente e artificialmente belo, plastificado, bombado, antitranspirante, limpíssimo, cheirossísimo, depiladíssimo? Ainda assim é corpo sem seus humores e cheiros tão próprios (feromônios)?!. Gosto de ver as gotículas de suor sobre minha pele durante uma caminhada pelas ruas, durante as pedaladas na bicicleta. Gosto de meus pelos compridos cumprindo seu dever de crescer, crescer e aparecer. Desconfio que eu seja peludo por dentro também...
E por falar em corpos seminus, perfumadamente transpirantes em caminhadas, denuncio o estranhamento dos homens musculosos que, com seus tórax e barrigas totalmente depilados, olhavam e “re-olhavam” o meu “toraxzinho” e minha barriguinha (sem tanquinho), parcialmente depilados, desfilarem pela orla da cidade. Os homens e o artista devem ser belos!? (até mesmo no fim de semana, na orla soteropolitana!?).
Como já foi destacado na série “Depilação Masculina”, temos dois elementos que se “con-fundem”: são eles artista e obra. Já o público poderá ser aquele que presencia a ação no espaço urbano no momento em que está sendo apresentada ou, de maneira diversa, aquele público virtual que acessa a imagem estática na rede mundial de computadores. A obra também é caracterizada pelo processo e trânsito do espaço público para a galeria virtual (blog do artista: http://www.zmarioperformer.blogspot.com/ e site de relacionamento, Facebook). E ainda assim, em ambiente virtual, o artista deve ser belo!?

Alguns amigos virtuais que acessaram as imagens do tórax e barriga depilados, num dos álbuns de minha página no Facebook, assim reagiram:




- me dá ginge**, que agonia!
- curti!
- isto é arte?
- uó!
- uó rapado deve ser legal!
- body art radical!

Desde Duchamp com a obra “Tonsure”, 1919 (fig. 2), passando pela performance de Marina Abramovic “Art must be beautiful, artist must be beautiful”, 1975, até os desdobramentos contemporâneos da body art, o artista contemporâneo tem reivindicado a presença do corpo do homem comum na arte e no nosso cotidiano que a cada dia perde em espontaneidade e liberdade; tem apresentado um corpo humano, essencialmente animal, com odor e suor sobre a pele. A arte da performance e a body art colocam em evidência o corpo natural frente ao corpo artificial. Em sua fragilidade, o corpo sempre apresenta esta condição animal ainda que adaptada aos signos civilizatórios. Este é o corpo presente na produção “Depilação Masculina” (body art in progress) e no desdobramento dessa série apresentada como proposta para o Circuito Regional de Performance BodeArte 2011, Natal-RN (http://www.circuitobodearte.blogspot.com/): “Isto não é body art!” (ver ANEXO).




Figura 2. Marcel Duchamp. “Tonsure”, 1919. Foto: Man Ray.
Foto/Fonte:
http://visel.freeshell.org/wordpress/wp-content/uploads/2006/04/1919---Tonsure-de-1919.jpg

*José Mário Peixoto Santos, Zmário, é artista performático e pesquisador da linguagem artística performance. Mestre em Artes Visuais pelo PPGAV da Escola de Belas Artes da UFBA onde pesquisou a produção de performance art na cidade de Salvador, Bahia. E-mail: artezmario@hotmail.com




** Arrepio ou desconforto neurológico provocado por um ruído ou sensação táctil.

REFERÊNCIAS

Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos GPCI, site oficial. Que corpo é este? Acesso em 21 jun. 2011. Disponível em:
http://www.corpos.org/quecorpo/quecorpoeesse_portugues/frame%20_texto_fundo_inicio.htm
Marcos Chaves, site oficial. Acesso em 21 jun. 2011. Disponível em:
http://www.marcoschaves.net/fotografias/avulsas/1_1_pt.htm
Marina Abramovic, site da 28º Bienal de São Paulo. Acesso em 21 jun. 2011. Disponível em:
http://www.28bienalsaopaulo.org.br/participante/marina-abramovic
SANTOS, José Mário Peixoto. Os artistas plásticos e a performance na cidade de Salvador: um percurso histórico-performático. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes-UFBA. Acesso em 21 jun. 2011. Disponível em:
http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=707
Wikipédia. Metrossexualismo. Acesso em 21 jun. 2011. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Metrossexualismo

ANEXO

Segundo Lucia Santaella, em Culturas e Artes do Pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, “[...] a body art é primariamente pessoal e privada. Seu conteúdo é autobiográfico e o corpo é usado como o próprio corpo de uma pessoa particular e não como uma entidade abstrata ou desempenhando um papel. O conteúdo dessas obras coincide com o ser físico do artista que é ao mesmo tempo, sujeito e meio da expressão estética. Os artistas eles mesmos são objetos de arte.”

Proponho na ação intitulada “Isto não é body art!”, 2011, da série Depilação Masculina (numa referência à pintura de René Magritte: “Isto não é um cachimbo!”), que um outro execute uma performance já apresentada por mim não como um “re-apresentar” ou “re-fazer” simplesmente, mas como uma maneira de negar a própria ação enquanto body art uma vez que esta linguagem está intimamente relacionada ao próprio corpo do artista-autor e não a um corpo alheio. Trata-se de questionar as relações entre signo, significado e significante; apresentação e representação na prática da performance.

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